Desde 2002, o PT venceu as quatro eleições para a presidência da República, duas com Luiz Inácio Lula da Silva, as outras duas com Dilma Rousseff. Em todas, o partido derrotado no confronto final foi o PSDB. Era natural, ao longo da campanha eleitoral, sobretudo no segundo turno, o acirramento dos conflitos entre os partidários de um e outro lado. Depois da posse, o clima costumava desanuviar um pouco, e a política reassumia seu caráter de jogo de tabuleiro, aquele xadrez monótono que nos acostumamos a acompanhar lá em Brasília. Não foi o que aconteceu depois da última eleição.
Até a semana passada, uma vizinha do prédio na frente do meu, em São Paulo, mantinha pendurado na janela um pôster da campanha de Dilma, para todos verem da rua. Nos vários panelaços contra o governo que, desde as manifestações de rua de 2013, têm se sucedido toda vez que Dilma aparece na televisão, essa vizinha costumava imprecar aos berros: “Vocês não querem que pobre ande de avião! Não querem que pobre vá para a universidade!”. A cada grito, era enxovalhada por outros vizinhos que batiam panelas. Não era, como se pode imaginar, um clima dos mais propícios a um debate político civilizado. Mas ainda parece pouco diante do que aconteceu num outro prédio paulistano, onde a briga de uma eleitora de Dilma com um casal que mora no andar de baixo – todos de nível superior, todos relativamente bem de vida – foi parar na delegacia.
Histórias assim se tornaram mais comuns. É como se a ideologia, não importa o nível intelectual, cultural ou sócio-econômico, tivesse se tornado uma válvula de escape para a agressividade humana, como outrora já foi a religião ou, em tempos mais recentes, o futebol. Com a Operação Lava Jato e o processo de impeachment, o clima só piorou. Nas ruas, nos abaixo-assinados, nas redes sociais, as brigas entre “coxinhas” e “mortadelas” – termos depreciativos com que um lado costuma agredir o outro – guardam aquele ar infantil que lembra as disputas incompreensíveis entre corintianos e palmeirenses, montéquios e capuletos, coca e pepsi e dezenas de outras querelas célebres. Quem faz esse tipo de paralelo imagina que os dois lados da briga sejam equivalentes, como dois irmãos que disputam um brinquedo, dois times que querem a mesma taça.
Mas há uma diferença essencial entre os dois lados. Eles não são iguais, e não há como analisar a progressiva polarização da nossa política sem entender isso. Embora na certa alguém vá me acusar de partidarismo, nada há, creiam, de partidário na constatação a seguir: a divisão da sociedade brasileira em dois lados antagônicos foi criada e forjada por único um partido político, o PT. Ou melhor, pelos líderes e pelos marqueteiros petistas, como estratégia para vencer as eleições.
Como os resultados eleitorais têm mostrado, a estratégia funcionou. Embora atingido em seu âmago pelos maiores escândalos de corrupção da história do Brasil, embora tenha errado feio na condução da política econômica nos últimos anos (fato reconhecido pelo próprio Lula), embora Dilma tenha feito promessas de campanha que todos sabiam impossíveis de cumprir, o PT continua no poder. E continua a governar com base naquele discurso tão bem formulado por seus marqueteiros há anos.
É, antes de mais nada, um discurso sedutor, capaz de “lavar a alma” do brasileiro médio, indignado com séculos de iniquidade, com a história de pobreza e desigualdade que grassa no Brasil. Não é um discurso racional, nem tem compromisso algum com a lógica ou a verdade dos fatos, como analisei em post anterior a respeito da cartilha petista sobre a Lava Jato. “O que importa não é como as coisas são, mas como parecem ser, e como essa aparência ecoa em nossas respostas mais emocionais e instintivas”, escreve o filósofo canadense Joseph Heath em seu livro “Enlightenment 2.0” (ou Iluminismo 2.0, a que retornarei em outro post). “Assim como os anunciantes descobriram que o importante não é o produto, mas a sensação que você tem ao pensar nele, os estrategistas de campanha e preparadores de discursos decidiram que a comunicação política não é sobre o que você diz, mas sobre como você faz o público se sentir.” Como toda propaganda, é um discurso que procura falar ao coração, não à cabeça.
Os dois ingredientes básicos desse discurso são conhecidos de todos, mas não custa resumi-los. O primeiro é a polarização do país entre “nós” e “eles”, “pobres” e “ricos”, “povo” e “elite”, adotada desde a campanha eleitoral vitoriosa de Lula em 2002 e repetida como mantra como forma de desqualificar qualquer opinião discordante. O segundo é a saga heróica de Lula, o retirante nordestino que se tornou uma espécie de messias dos deserdados, um “pai dos pobres” mais original e mais autêntico que seu inspirador Getúlio Vargas, capaz de colocá-los nos aviões e nas universidades, como diz minha vizinha. Os dois ingredientes foram reunidos de modo a armar um discurso tão eficaz para seduzir o eleitor quanto uma boa novela. “Pode-se alegar que todas as campanhas publicitárias de todos os partidos políticos brasileiros, a partir dos anos 80, buscavam extrair vantagens das formas da publicidade e do melodrama industrial”, disse o jornalista Eugênio Bucci recentemente na série de conferências Novo Espírito Utópico. “Isso é verdade cristalina. Com o PT, no entanto, essa tendência foi mais longe e foi mais fundo.”
O melhor paralelo para entender a estratégia petista vem dos Estados Unidos. É o Partido Republicano. Ideologicamente, nada mais distante que um petista e um republicano. Estrategicamente, nada mais parecido. É verdade que a polarização política entre os americanos é mais profunda e mais antiga – começou a se acirrar há pelo menos 40 anos. O sistema eleitoral deles, baseado no voto distrital, também engendra um ambiente político naturalmente bipolar, pois favorece a emergência de dois partidos dominantes. Mas há uma semelhança inequívoca entre republicanos e petistas no estilo do discurso, na estratégia política e até mesmo na natureza do partido.
Como o discurso petista, o republicano se reveste de um caráter anti-elitista e anti-intelectual. Pretende opôr o “bom senso” do povo às “teorias esquisitas” que emanam das elites de técnicos, economistas ou acadêmicos. O pioneiro desse discurso foi Ronald Reagan, conhecido por disseminar histórias sabidamente falsas para colorir suas opiniões com fatos eloquentes. Se os fatos não eram propriamente verdade, e daí? Que diferença fazia? Ao contrário de antecessores como Richard Nixon, Reagan não estava muito preocupado em esconder as mentiras que contava. Desde que elas parecessem verdade, desde que o eleitor “sentisse” que eram verdade e se convencesse de que o importante era votar em Reagan, o jogo estava ganho. Os americanos criaram até uma expressão para se referir a esse tipo de discurso que tem jeitão de verdade: “truthiness”, algo como “verdadice”. Repetidas à exaustão, mesmo que desmentidas, as “verdadices” pegam no eleitorado e vencem a realidade.
Durante os anos 1990, os republicanos deram um outro passo, ainda mais polarizador, para recuperar o poder, perdido para Clinton. Estabeleceram uma estratégia de oposição sistemática a qualquer iniciativa dos democratas no Congresso, sem importar seu efeito no país – exatamente como o PT fez ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso. A recusa em estabelecer qualquer tipo de compromisso político contribuiu para fazer com que praticamente sumisse do partido a figura do republicano moderado, tão comum nos anos 1960 e 1970, que buscava alianças com representantes do outro lado. Um estudo recente publicado na revista acadêmica Plos One revela, num gráfico montado com base em todas as votações na Câmara de Representantes americana, o avanço impressionante da polarização ao longo dos anos. Episódios extremos, como a paralisia das atividades do governo (“shutdown”) por duas semanas em 2013, pela recusa republicana em elevar o teto da dívida pública, revelam o risco dessa tendência.
Também nos Estados Unidos, a polarização é assimétrica. Republicanos e democratas são partidos de natureza diferente – e nesse ponto há outra semelhança intrigante entre republicanos e petistas. “Acadêmicos assumem em geral que a esquerda e a direita americanas são imagens no espelho uma da outra, mas na verdade os dois lados exibem diferenças importantes, pouco percebidas”, escrevem os pesquisadores Matt Grossman, da Universidade do Estado do Michigan, e David Hopkins, do Boston College, em estudo recente sobre o assunto. Há, segundo eles, um grau maior grau de “pureza ideológica” entre os republicanos, que atuam na defesa de causas como cortes de impostos, o direito ao porte de armas ou a proibição do aborto – enquanto os democratas se aglutinam em torno da defesa de políticas específicas que defendem grupos de interesses. Grossman e Hopkins argumentam de modo convincente que a intransigência ideológica dos republicanos na defesa dessas causas foi responsável pela hoje irreversível polarização política no país. As consequências para os dois partidos foram distintas. Democratas, como o presidente Barack Obama, têm dificuldade para governar. Republicanos, amarrados à intransigência e à inflexibilidade, têm dificuldade para escolher um candidato com chance nas eleições de 2016.
No Brasil, a situação é bem distinta, mas é possível verificar a mesma assimetria entre partidos mais fiéis à ideologia e outros mais afeitos ao pragmatismo. Em que pesem todas as denúncias de corrupção e as alianças de ocasião em seus 13 anos de governo, o PT e seus aliados à esquerda ainda têm maior consistência ideológica que seus rivais. Quando o PT abandona suas bandeiras em nome do pragmatismo e da governabilidade – da maior presença do Estado na economia à defesa de direitos das minorias –, há uma ruidosa chiadeira das alas mais radicais do partido. O PSDB tem um perfil distinto, mais permeável às alianças e mais preocupado em atender aos grupos de interesse que lhe dão apoio. Seu discurso só se torna mais duro a reboque do PT. É essa falta de “pureza ideológica” que torna a oposição peessedebista tão anódina, ou mesmo artificial, aos olhos do eleitor,
Há, enfim, um terceiro ingrediente que tem, historicamente, funcionado como uma espécie de vacina contra a polarização na nossa jovem democracia: o PMDB. Trata-se de um partido sem consistência ideológica nenhuma – mas pragmatismo em abundância. No lugar-comum de Brasília, o PMDB é o “esteio da governabilidade”. Em qualquer governo. Para exercer o poder no nosso presidencialismo de coalizão, tem bastado ao presidente da República acomodar-se aos interesses das dezenas de grupos regionais que compõem o PMDB, distribuindo cargos e ministérios. Esse toma-lá-dá-cá gera repulsa em quem espera um comportamento moral irrepreensível dos políticos. Mas tem um lado positivo, refletido na governabilidade e na estabilidade institucional, sem nenhuma ruptura em mais de três décadas.
Tem sido assim desde os tempos do velho centrão, surgido logo no final do regime militar. Até agora. Ao romper com o governo Dilma, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, rachou também seu partido. As disputas internas hoje opõem até o presidente do Senado, Renan Calheiros, e o vice-presidente Michel Temer. O vetor dessas disputas é o mesmo que polariza a sociedade brasileira – aqueles favoráveis a manter a aliança com o PT de Dilma; e os antipetistas, favoráveis ao impeachment. À medida que a polarização toma conta do Congresso Nacional e do PMDB, o velho centrão moderado perde força.
No campo tradicionalmente associado à direita, emergem nomes com um discurso conservador de maior consistência ideológica, que encontra forte eco na população, como revela a pesquisa do instituto Paraná Pesquisas publicada no post de ontem. É o caso do próprio Cunha (contrário ao aborto), do deputado Jair Bolsonaro (defensor dos militares e da pena de morte) ou do também deputado e pastor Marcos Feliciano (representante da tendência religiosa, opositor do aborto e do casamento gay).
O sucesso desse tipo de discurso extremista, à esquerda ou à direita, pode vir a arrefecer com o desfecho do processo de impeachment (qualquer que seja ele), com a eventual saída do PT do poder ou com o surgimento de um novo acordo político que permita a governabilidade. O eco crescente desse discurso na população deixa, contudo, margem para ceticismo. Para entender por que, é preciso decifrar como o discurso extremista se tornou tão sedutor nos tempos atuais, não apenas no Brasil. Esse será o tema do próximo post desta série.
Helio Gurovitz