Bloqueio do Telegram pelo STF pode ser ineficaz na prática; entenda

Mesmo com suspensão dos serviços, o aplicativo poderia facilmente ser acessado através de mecanismos que ajudam a burlar esse tipo de impedimento.

O bloqueio do Telegram em todo o Brasil, determinado pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), pode não ter efeito prático.

Especialistas em direito digital e cibersegurança ouvidos pela reportagem antes da decisão afirmam que não existem bases jurídicas que sustentem o bloqueio e que, mesmo com suspensão dos serviços, o aplicativo poderia facilmente ser acessado pelos usuários através de mecanismos que ajudam a burlar esse tipo de impedimento.

A empresa está no centro de polêmicas envolvendo a Justiça brasileira. O Telegram, que não possui representação no Brasil, costuma dificultar a colaboração com os governos de diversos países.

“Hoje o bloqueio do Telegram no Brasil dificilmente encontra respaldo na legislação e poderia ser pouco efetivo por conta da forma que os usuários podem burlar o bloqueio da internet”, diz Guilherme Klafke, pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação na FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Segundo ele, não existe uma lei que criminalize a conduta dos usuários de aplicativos como o Telegram, especialmente no que se refere a desinformação.

“Não é pacífico que exista lei que autoriza bloqueio de aplicativo. Tanto não é pacífico que o Supremo ainda não terminou de julgar as ações sobre o bloqueio do WhatsApp, que também não cumpriu decisões judiciais alegando que tinha uma criptografia de ponta a ponta”, avalia.

Ele explica que está previsto no Marco Civil da Internet que em caso de crime a plataforma tem o dever de remover o conteúdo.

 

O especialista também cita que o Código de Processo Penal e as leis de investigação de organizações criminosas também preveem que as plataformas compartilhem informações com a Justiça em casos que envolvam a segurança pública. Entretanto, este não seria o caso do Telegram.

“Não existe o crime de desinformação, o tipo penal. O que existe é uma infração na legislação eleitoral que você comete quando divulga fatos sabidamente inverídicos durante o processo eleitoral, que ainda nem começou”, explica.

Solano de Camargo, presidente da comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB-SP, analisa como inconstitucional um bloqueio total do Telegram no país.

Segundo ele, banir o uso da plataforma é medida “exagerada” e “desproporcional” e iria contra a liberdade de expressão de todos os usuários. Camargo argumenta que a medida terá como efeito apenas empurrar os internautas brasileiros para outras plataformas.

O bloqueio teria como fundo “a existência de alguns grupos de discussão nos quais poderia ter ocorrido algum ilícito eleitoral. Mas isso não quer dizer que a ferramenta como um todo sirva para crime”, diz.

Para Camargo, é inconstitucional “porque derruba a comunicação de mais de 50 milhões de usuários brasileiros por conta de possíveis crimes cometidos por poucas pessoas. O princípio da Constituição é que as decisões precisam ser proporcionais e razoáveis”.

Do ponto de vista tecnológico, a medida também não funciona, de acordo com Marcos Antônio Simplício Júnior, especialista em cibersegurança da Escola Politécnica (Poli) da USP.

“Tem jeitos de fazer e nenhum deles vai funcionar”, avalia. “O básico seria [bloquear] via DNS. Por que não funciona? Por que o usuário pode simplesmente trocar o servidor de DNS. Só usar um de fora do Brasil e vai conseguir voltar a utilizar”.

Caso o aplicativo não funcione via DNS e tenha um IP fixo cadastrado seria possível bloquear o IP.

“Nesse caso também da para sair [do bloqueio] via proxy ou VPN. A ideia é que a informação vai para um outro site e esse outro site acessa o Telegram para você. Da para fazer de forma segura. Essas são as duas táticas básicas para bloquear alguma coisa na internet”, conta.

 

Burla

Segundo o professor do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da USP, qualquer uma das duas possibilidades de bloqueio tem formas de burlar relativamente simples.

“Nada que um tutorial de dois minutos na internet não explique como fazer. O próprio WhatsApp foi bloqueado no passado usando este tipo de técnica que não funcionava na prática”, diz.

“A internet foi feita para ser difícil de bloquear”, brinca o especialista.

Caso o usuário não possuísse o Telegram, depois do bloqueio, ele conseguiria baixar o aplicativo em sites hospedados fora do Brasil.

A decisão de Moraes que veio a público nesta sexta-feira (18) estipula multa diária de R$ 100 mil em caso de descumprimento.

O Telegram é visto como uma das principais preocupações para as eleições de 2022 devido à falta de controles na disseminação de fake news e se tornou também alvo de discussão no Congresso e no TSE para possíveis restrições em seu funcionamento no Brasil.

Amplamente usada pela militância bolsonarista, a ferramenta é hoje um dos desafios das autoridades brasileiras engajadas no combate à desinformação eleitoral.

Depois de meses ignorando diversos pedidos da Justiça do Brasil, o Telegram bloqueou, no dia 26 de fevereiro, três canais ligados ao influenciador bolsonarista Allan dos Santos. A ação é decorrente de uma determinação de Moraes.

Após ignorar decisões do próprio ministro do STF e tentativas de contatos de autoridades que atuam no combate à desinformação, essa foi a primeira ordem judicial brasileira cumprida pelo aplicativo.

Allan é investigado em inquérito de relatoria do ministro sob a suspeita de fazer parte de milícia digital que atua no ataque a instituições, como o Supremo.

Moraes ameaçava bloquear o Telegram pelo prazo inicial de 48 horas, além de aplicar multa diária de R$ 100 mil, caso não suspendesse os perfis ligados a Allan.

A plataforma vinha escapando de ordens e pedidos de autoridades brasileiras, incluindo o STF, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e o MPF (Ministério Público Federal), que fazem tentativas de contato sobre demandas envolvendo publicações na rede social.

No mês passado, o jornal Folha de S.Paulo mostrou que o Telegram descumpre há mais de seis meses decisão do ministro para que fosse apagada publicação de agosto de 2021 do canal do presidente Jair Bolsonaro (PL) na plataforma com informações falsas sobre a violabilidade das urnas eletrônicas.